“Comparai sem preconceitos o estado do homem civilizado com o do homem selvagem e procurai, se puderdes, como, para além da sua maldade, necessidades e misérias, o primeiro abriu novas portas à dor e á morte. Se considerares os males de espírito que nos consomem, as paixões violentas que nos esgotam e desolam, os trabalhos excessivos com que os pobres estão sobrecarregados, a moleza ainda mais perigosa á qual os ricos se abandonam e que fazem morrer, uns das suas necessidades e os outros dos seus excessos, se pensardes nas monstruosas misturas dos alimentos, nos perigosos condimentos, nos géneros alimentícios corrompidos, nas drogas falsificadas, nas intrujices dos que as vendem, nos erros daqueles que as administram, nos venenos dos vasos nos quais as preparam, se atentardes nas doenças epidérmicas engendradas pelo mau ar entre multidões de homens reunidos, nas ocasionadas pela delicadeza da nossa maneira de viver, nas passagens alternativas do interior das nossas casas ao ar livre, no uso das roupas escolhidas ou abandonadas com demasiada precaução e em todos os cuidados que a nossa sensualidade excessiva transformou em hábitos necessários e cuja negligência ou privação nos custa, em seguida, a vida ou a saúde, se tiverdes em linha de conta os incêndios e os tremores de terra que, ao consumirem ou derrubarem cidades inteiras, fazem parecer os habitantes aos milhares, numa palavra, se juntardes os perigos que todas estas causas reúnem, continuamente, sobre as nossas cabeças, sentireis como a Natureza nos faz pagar caro o desprezo a que votamos as suas lições.”
Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, pág. 96