quinta-feira, 5 de julho de 2012

O elo mais fraco

Foi recentemente publicada a Lei que aprova o regime jurídico da reorganização administrativa territorial autárquica, nome pomposo e sonante, mas que, bem vistas as coisas, não passa de uma mera extinção ou união de freguesias.

Reformar, reorganizar ou reestruturar o que quer que seja em época de crise, é um pau de dois bicos. Por um lado há tendência para se implementar a reforma em função de critérios e objectivos economicistas e não com base em objectivos que efectivamente potenciem mais eficácia e eficiência na gestão da área ou sector que se pretender reformar. Por outro lado, não se aproveitando os momentos de crise para mudar alguma coisa, tudo continuaria eternamente na mesma.

A reforma do Estado e da Administração implica um debate transversal a toda a sociedade. Um debate sério que envolva a sociedade civil, os partidos políticos, as universidades e demais instituições. É preciso redefinir as funções e a missão do Estado. Feito isso, então sim, deverá reestruturar-se a Administração Central, Regional e Local, em sentido orgânico e material, definindo os níveis de competência e financiamento de cada poder de acordo com as suas atribuições.

Enquanto a verdadeira reforma do Estado não passar de intenções, continuar-se-ão a promover e a implementar mudanças avulsas cujo sentido e alcance apresentam uma enorme falta de objectividade. É o que sucessivamente vem acontecendo sempre que há uma mudança de Governo após eleições. Extinguem-se uns institutos públicos para se criarem outros, transferem-se competências inter-ministérios, criam-se e extinguem-se direcções gerais, criam-se gabinetes de apoio para acompanhar os processos de privatização ou outros dossiers que os megas ministros não conseguem abranger, nomeiam-se uma data de pessoas e cessam-se funções a outras tantas, ou seja, baralha-se e volta-se a dar de novo, porque o jogo é o mesmo.

Independentemente de o Estado ter uma função mais abstencionista, reguladora ou intervencionista, consoante a matriz ideologia de quem o governa e das políticas que põe em prática, há domínios em que os seus pilares têm que estar bem estruturados, nomeadamente nas funções nucleares, como são a defesa, a justiça, os negócios estrangeiros e a administração interna (segurança e protecção civil). Também em sectores como a educação, saúde e administração fiscal, deveria haver estabilidade organizativa. A orgânica e o quadro de atribuições e competências destes sectores deveriam permanecer estáveis, independentemente de qualquer mudança eleitoral.

É verdade que a evolução dos paradigmas de Administração, da visão clássica do Estado intervencionista originária no pós II Grande Guerra ao Estado mais regulador e abstencionista assente na teoria do New Public Management surgida nos países Anglo-saxónicos no final dos anos setenta, às teorias actuais assentes num modelo de gestão que fomente valor acrescentado na prestação de serviços públicos, através da utilização eficiente e inovadora dos recursos, potenciando uma relação de interacção entre o cidadão e a Administração, tem vindo a fazer caminho no nosso país. Contudo, essa mudança entre paradigmas de Administração e Gestão Pública decorre da evolução natural da sociedade, das instituições governamentais e não governamentais, das políticas comuns no quadro europeu e não propriamente de uma reflexão sustentada num amplo debate nacional sobre que Estado queremos e podemos ter.

Qualquer revisão constitucional, qualquer alteração no sistema político, ainda que premente, sem a realização deste fórum, continuará a promover ineficiências na gestão pública, desbaratando tempo e recursos, adiando o inadiável.

Desta forma, a Administração desconcentrada e descentralizada, continuará a ser retalhada sem qualquer objectividade. Foi o que aconteceu em 2003, quando foram instituídas as comunidades intermunicipais, também sob o leme do dr. Miguel Relvas, então Secretário de Estado da Administração Local. Estas comunidades são na verdade uma tentativa frustrada de resposta à criação das Regiões Administrativas, chumbada no referendo de 1998, porque os Portugueses entenderam que as mesmas serviriam para criar mais uns lugares, vulgos, “tachos” políticos. A verdade é que estas Comunidades Intermunicipais não referendadas, foram instituídas, possuem um vasto leque de competências, mas na prática, parecem não ter grande influência e a maioria das pessoas não sabe o que são nem para que servem.

Esta Lei que impõe a reorganização administrativa territorial autárquica, determinando a eliminação de freguesias em espaço rural e urbano com base em critérios populacionais, deveria ser precedida de uma revisão ao quadro de atribuições, competências e financiamento das autarquias locais.

Faz todo o sentido que as freguesias urbanas ganhem escala, dimensão, massa crítica e novas atribuições, libertando os municípios para outras funções. Contudo, efectuada esta reorganização territorial, continuarão a dispor das mesmas atribuições e competências que uma freguesia de menor dimensão. Ambas, rurais ou urbanas, continuarão a viver com enormes constrangimentos financeiros e logísticos, dependendo da boa vontade dos municípios. Impõe-se a agregação de freguesias no espaço urbano e no espaço rural, mas deveria começar-se por rever o quadro de atribuições e respectivo regime de financiamento que lhes permita efectivamente cumprir as suas atribuições e só depois reorganiza-las territorialmente.

O mesmo sucede em relação aos municípios, ou seja, o município de Sintra ou de Vila Nova de Gaia dispõe exactamente do mesmo quadro de atribuições e de competências que o município de Valpaços ou de Murça, apesar de serem realidades bem diferentes. Dentro de um leque de atribuições transversal a todas as autarquias, deveriam existir atribuições noutros domínios de acordo com as especificidades de cada município. A verdadeira descentralização política e administrativa passa efectivamente por dotar os municípios de um quadro de atribuições transversal a todos, prevendo também a sua intervenção em áreas específicas, promovendo desta forma o designado princípio da subsidiariedade, como princípio regulador de competências, que basicamente, determina que as decisões políticas devem ser tomadas a um nível o mais próximo possível do cidadão.

Definido um novo quadro de atribuições, competências e financiamento, deveria então dar-se o passo seguinte, ou seja, reorganizar a administração territorial autárquica, não apenas no domínio das freguesias mas também no âmbito dos municípios, avançar com a instituição das regiões administrativas em contraponto às inúmeras comunidades intermunicipais. Paralelamente, promover alterações ao actual sistema político, através da revisão das leis eleitorais, legislativa e autárquica.

Promover unicamente uma alteração ao nível das freguesias, não resolve qualquer problema de gestão pública, nem dignifica e valoriza as freguesias, que continuarão sem autonomia nem capacidade para se emanciparem dos municípios enquanto verdadeiras autarquias, continuando a ser o elo mais fraco.