Quando te vi no chão, agarrado ao
joelho, em sofrimento, a lutar contra o destino cruel, traçado naquela entrada napoleónica, não consegui conter as lágrimas. Tu, o maior dos génios, desceste à tua condição de mortal, tantas vezes esquecida, porque nos
habituaste sempre a ver-te como um extraterrestre e quando te transformas em apenas mais um homem, cobramos-te por tudo e por nada.
A vida é por vezes ingrata e
injusta, mas o teu momento de infortúnio, transformou-se numa enorme lição de
vida para todos os que te viram sair prostrado naquela maca, vertido em lágrimas, perante o aplauso unânime,
dos que te reconheceram finalmente, não a comprovada genialidade, mas a condição de
enorme ser humano.
O que não nos mata torna-nos mais
fortes, diz o nosso povo, sempre que se vê confrontado perante mais uma adversidade.
E tantas pedras têm sido colocadas no caminho deste povo, nestes novecentos anos
de história. Soubemos uma vez mais, sofrer como sempre. Com suor
e lágrimas, lágrimas de Portugal, como escreveu Fernando Pessoa, reerguemos-nos nessa tua adversidade e fizemos dela uma bandeira.
Recordamos o dia 22 de Junho. Tínhamos o bilhete de regresso praticamente tirado, quando a Hungria esteve por cima de nós em três momentos, no final da fase de grupos.
Recordamos o dia 22 de Junho. Tínhamos o bilhete de regresso praticamente tirado, quando a Hungria esteve por cima de nós em três momentos, no final da fase de grupos.
Imbuídos do enorme espírito colectivo que nos caracterizou durante a prova, o João Mário cruzou para a área e num pormenor
de génio, ligaste-nos novamente à máquina, quando toda a gente te criticava, por até
então teres sido apenas mais um humano em campo até te transformares com esse toque no
extraterrestre a que nos habituaste. E os Húngaros ainda marcaram novamente, mas da tua cabeça saiu
o passaporte para a segunda fase do torneio.
Seguiu-se a Croácia, num jogo,
sem brilho, onde nos anulamos também a nós, para os podermos anular a eles. Quando
já tudo parecia encaminhado para o tormento dos penaltis, surgiu um miúdo com a
mesma irreverência que te vimos há 12 anos no euro 2004. Aos 117 minutos, levou
a bola até lá à frente, passou ao Nani, que chutou na tua direcção. Correste que nem um maluco já com 117 minutos nas pernas, remataste forte
e colocado como sempre, para uma defesa incompleta do redes, que o Quaresma
aproveitou e nos permitiu continuar a sonhar.
E veio a Polónia, fisicamente
possante, que já tinha mostrado argumentos frente à poderosa Alemanha. Presos na
nossa teia, percebemos que era difícil vencermos, mas também percebemos que seria
quase impossível alguém nos conseguir levar de vencida. Vagueaste muito, fora
do teu habitat natural, o lado esquerdo do campo, onde gostas de partir em direcção à baliza. Também os teus colegas, do meio campo para a frente pisaram
habitats diferentes daqueles que povoam durante todo o ano e isso parecia estar
a condenar o nosso futebol, tão criticado por esse mundo fora. Certo é que nos
mostramos exímios na interpretação táctica e na anulação das armas dos
adversários. Foi o sacrifício individual em prol do espírito colectivo que nos
fez ultrapassar as barreiras. Já assim fora, há mais de 200 anos quando nas linhas de Torres Vedras derrotamos os Franceses após a terceira invasão napoleónica.
Vieram os penaltis e mostraste
que não és apenas um general, sabes finalmente honrar a braçadeira que o
Felipão decidiu conceder-te um dia, ainda cedo demais. Deste o exemplo e foste marcar o
primeiro, cheio de coragem. Se falhavas, rapidamente esqueciam os golos que
marcaste no apuramento e o toque de génio contra a Hungria. As redes sociais, recheadas de pirómanos, não te perdoariam. A imprensa internacional aproveitaria para te arrasar e
humilhar como gostam de fazer, porque dizem que és arrogante e poucos olham
para os actos de solidariedade humana que vais deixando por esse mundo fora para
além da tua marca genial em quase todos os estádios do mundo.
Assumiste, deste
o peito à bala como não poderia deixar de ser e mostraste ao país,
especialmente aos sábios da bola que se sentam nas cadeiras das televisões para
comentar, o que os teus companheiros já tinham visto. Tínhamos Capitão. O teu exemplo motivou um puto com
o mundo à frente a seguir-te os passos e não deixou alternativa ao veterano
Moutinho a quem já tinhas sacudido a pressão naquele “anda bater, se perdermos que se foda”.
E veio o Pais de Gales com o
fantástico Gareth Bale, teu companheiro no Real Madrid. E como no mundo
globalizado em que vivemos tudo que está para além das quatro linhas vende e
alimenta muita boca, logo tentaram transformar um jogo entre duas Selecções nacionais num duelo entre ti e o teu colega. Uma vez mais, o que não iriam dizer e escrever se o teu colega levasse a melhor. É precisamente por isso, que te
estou a elevar e a destacar neste enorme feito colectivo. Porque quando és
humano, arrasam-te, porque ninguém te perdoa um mau momento, porque estão
sempre a exigir mais e mais de ti, porque te criticam por tudo e por nada,
porque, pasme-se, escreveu-se que a decisão da bola de ouro se iria jogar
naquele jogo, como se fosse possível, com todo o respeito e admiração pelo teu
colega, um fantástico jogador, atribuir-lhe o prémio, com os seus 19 golos na
época, tendo sido tu uma vez mais o melhor marcado da Champions, ultrapassando
pela sexta vez consecutiva a marca de 50 golos por época.
Puseste as universidades de
motricidade humana do mundo a estudar aquele lance quando uma vez mais te
transformaste num extraterrestre. E todos se admiraram com aquilo que já fizeste
outras tantas vezes noutros campos, inclusive pela nossa Selecção. Elevares-te ao céu para
dares uma cabeçada do outro mundo, uma cabeçada do teu mundo, onde só habitam os
génios a quem Deus concedeu o privilégio de se distinguirem dos outros génios.
Com aquela cabeçada, a não sei
quantos metros de altura e km hora de velocidade, chegamos a Paris. Tens o condão de nos fazer sonhar e
de fazer os teus colegas acreditar que era possível, de que era este o nosso momento.
Já tudo foi dito e escrito sobre
ti. Se estás com má cara, falam de ti, dizem que amuas. Se te ris dizem que és
arrogante. Tens projectado o nome de Portugal para uma dimensão imensamente superior. Mas, por vezes, parece que não há memória e também Camões caracterizou bem o sentimento de
ingratidão e inveja que infelizmente grassa no nosso país. Ganhaste não sei
quantas botas de ouro (5?) e deves ter a quarta bola de ouro a caminho. Mas isso já
nem te deve importar, porque a história está feita, com muito talento e muito
trabalho. Quem não quer ver o óbvio, reconhecer o talento, que respeite o
trabalho.
Jogas num clube que exige muito
de ti e a quem deste tudo. Mas nunca te negaste a vir jogar um amigável pela
Seleção do teu país. Jogas qualquer jogo como se fosse o último. Não te poupas
nem te escondes. Podias aproveitar para fazer o que outros fizeram, quando
tinham a tua idade. Sair da Seleção em grande. Mas conhecendo-te a vontade
interminável de vencer, vais querer estar no próximo mundial e nós queremos-te
lá, porque a lenda continua, mesmo que a idade, não te permita tantos momentos de transcendência como até aqui.
Faltava-te este título,
perseguido desde aquela final de Lisboa, em 2004. Emocionei-me quando te vi
abraçar o Figo, antes de levantares a taça que vos fugiu naquela fatídica tarde
de má memória. Cedo tiveste que abandonar o campo. Primeiro assobiaram-te,
quando sofrias após a pancada que levaste. Não te deixaram metamorfosear de
homem para extraterrestre. Saíste numa maca, aplaudido de pé por todo o
estádio, num grande momento, não de futebol, mas de humanismo e solidariedade.
Foi esse momento adverso que deu crença
e garra aos teus colegas, que souberam superar-se e transcender-se como
verdadeiros extraterrestres na noite em que tu nos mostraste o enorme ser
humano que também és.
Viva Portugal, nação valente,
nobre e imortal!