quarta-feira, 6 de julho de 2016

Nau Catrineta

Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar!
Ouvide agora, senhores,
Uma história de pasmar.

Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar,
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar.

Deitaram sola de molho
Para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija,
Que a não puderam tragar.

Deitaram sortes à ventura
Qual se havia de matar;
Logo foi cair a sorte
No capitão general.

- "Sobe, sobe, marujinho,
Àquele mastro real,
Vê se vês terras de Espanha,
As praias de Portugal!"

- "Não vejo terras de Espanha,
Nem praias de Portugal;
Vejo sete espadas nuas
Que estão para te matar."

- "Acima, acima, gajeiro,
Acima ao tope real!
Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal!"

- "Alvíssaras, capitão,
Meu capitão general!
Já vejo terras de Espanha,
Areias de Portugal!"

Mais enxergo três meninas,
Debaixo de um laranjal:
Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,

A mais formosa de todas
Está no meio a chorar."
- "Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!

A mais formosa de todas
Contigo a hei-se casar."
- "A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar."

- "Dar-te-ei tanto dinheiro
Que o não possas contar."
- "Não quero o vosso dinheiro
Pois vos custou a ganhar."

- "Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual."
- "Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar."

- "Dar-te-ei a Catrineta,
Para nela navegar."
- "Não quero a Nau Catrineta,
Que a não sei governar."

- "Que queres tu, meu gajeiro,
Que alvíssaras te hei-de dar?"
- "Capitão, quero a tua alma,
Para comigo a levar!"

- "Renego de ti, demónio,
Que me estavas a tentar!
A minha alma é só de Deus;
O corpo dou eu ao mar."

Tomou-o um anjo nos braços,
Não no deixou afogar.
Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar;

E à noite a Nau Catrineta
Estava em terra a varar.


Almeida Garrett, Romanceiro