A entrevista que o General Ramalho Eanes, concedeu ao Expresso de 26/01, revela-nos uma verdadeira lição de humildade, altruísmo e sentido cívico de alguém que serviu o país sem se servir, pautando a sua acção política enquanto primeiro Presidente da República democraticamente eleito, pela elevação do virtuosismo político, nobreza de espírito e sentido de responsabilidade na dedicação à causa pública.
A entrevista centra-se essencialmente no actual momento que o país vive, político, social e económico. Não é uma grande entrevista em termos quantitativos mas é uma grande entrevista em termos qualitativos. Ramalho Eanes não é um político de sound byte, não vive no imediato em que a sociedade actual se transformou. É um homem que pensa e reflecte o curso da história e a evolução humana.
Vou apenas transcrever uma breve passagem, a propósito do actual momento e da reforma do Estado. “Numa altura em que os portugueses têm medo, estão angustiados, em que estão quase a passar da resignação à indignação, há que tecer uma estratégia de futuro baseada numa esperança de melhores dias. Creio que os portugueses, tal como eu, estão dispostos a fazer sacrifícios. Mas não me venham, não nos venham, pedir sacrifícios quando se olha para a frente e se não vê que os nossos filhos e netos tenham futuro. Um povo que vive mal no presente e a quem não dizem que vai viver melhor no futuro não consegue manter a unidade nacional e a coesão. E um povo sem unidade não é um povo, não é uma comunidade de partida e destino comuns.”
O homem, o militar, o político, sabe do que fala. A unidade nacional, a coesão territorial, estão em perigo, porque o medo corrói a esperança do homem e fragiliza os pilares do Estado enquanto nação.
Encontra-se na esfera pública uma discussão sobre a inevitável reforma do Estado. Esta discussão não é de agora. No mundo académico acontece desde sempre. Desde a existência do Estado, que o estado do Estado anda a ser debatido. O mundo, o homem e as instituições transformam-se mutuamente. Olhemos para trás, para a mudança de regime que se operou há 39 anos, para a instauração da democracia, a construção do serviço público de saúde, de ensino, de segurança social, para os dois choques petrolíferos que enfrentamos, a adesão à Europa e à moeda única, à modernização das redes de equipamentos e infra-estruturas sociais, culturais desportivas, ambientais, tudo isto é reforma do Estado e da sociedade.
Hoje o que deve estar em cima da mesa é uma mudança de paradigma. A natureza não dá resposta às exigências actuais do homem. As consequências estão à vista, através das alterações climáticas e das manifestações perturbadoras no ambiente. Também o Estado não está a responder a essas exigências, porque os seus recursos escasseiam, pondo em causa a sua sustentabilidade. Há que reordenar e reequilibrar a relação entre o homem e a natureza e entre o homem e o Estado. Só uma mudança cultural e cívica poderá conduzir a esse equilíbrio. Não podemos continuar a olhar para o Estado como um protectorado, como um poço sem fundo, muito menos a ser governados por quem assim pensa e exerce a governação sem verdadeiro espírito de missão e respeito pelo bem comum.
Foi essa insustentabilidade e esse desequilíbrio que trouxe o debate da reforma do Estado para a esfera pública. Não começou da melhor forma, mas a discussão está ai, nos fóruns, nas universidades, nas fundações, no seio dos partidos políticos, nas mesas de café, entre nós. Se queremos viver melhor amanhã e devolver esperança ao país não nos podemos alienar deste debate que deve envolver todos os Portugueses.
Compete aos políticos não prejudicar nem inquinar o debate, sob pena de comprometer o verdadeiro alcance da Reforma. Fica a ideia que para alguns políticos, o debate parece reduzir-se a um corte de quatro mil milhões de euros na despesa pública, aquilo que resolve o imediato, mas nos condicionará o amanhã.
Uma coisa é um corte de quatro mil milhões no Estado. Outra bem diferente é debater o estado do Estado, as suas funções e sustentabilidade, o que faz bem, o que faz mal, o que não faz por querer fazer tudo, o que faz a mais e pode deixar de fazer. A reforma do Estado, não se pode reduzir a uma discussão cujo único objectivo passa por fazer um corte de 4 mil milhões de euros na despesa pública, nem pode ser feita num plano mediático, a correr, como se não houvesse amanhã. É uma matéria demasiado séria e transversal a toda a sociedade portuguesa, para que possa ser feita sem a participação da mesma.
Infelizmente, não temos na condução da governação, homens com a visão, sensatez, sentido político e preparação do General Ramalho Eanes. A história tem o seu próprio tempo. O plano imediato em que vivemos precipita muitas vezes a leviandade com que se decide sobre o amanhã. Quem nos governa não pode ter medo do presente, para que os Portugueses não tenham medo do futuro.